- Que curso queres seguir?
Tinha de optar já, no 6.º ano do liceu, pelo de Letras ou Ciências. Mas o interesse profundo de um e de outro como podia eu sabê-lo? A verdade de um curso não está no que aí se aprende mas no que disso sobeja: o halo que isso transcende e onde podemos achar-nos homens. Assim meu pai, que era médico, estava certo com a sua profissão, como o meu irmão Tomás estaria com o seu curso de Agronomia, como o meu irmão Evaristo com as suas sucessivas reprovações no 5.º ano.
- Penso - disse meu pai - que te darás melhor em Letras.
Decerto, decerto: eu nunca tivera saúde, a vida de professor era tranquila. Porque eu sonhara sempre, talvez por isso, com uma farda militar e uma vida romanesca. Meu pai corrigiu:
- Não é só isso. Há mais razões.
Sim. Havia o meu interesse pelas leituras, a invenção do indizível e o meu verso clandestino que a cantava. [...] Havia enfim, desde a infância, essa velha pergunta sobre a descoberta de nós próprios e que eu também fizera um dia a meu pai:
- Quem sou eu?
Era uma tarde de Verão, meu pai lia o jornal ao pé do tanque, eu olhava a água, absorto.
- Bom - disse meu pai, um pouco perturbado: - tu és meu filho, um homem, um ser vivo que pensa, que vive e que há-de morrer como todo o ser vivo.
- Mas eu, eu o que é que sou?
Meu pai optou por contar-me a história da evolução da vida. Mas eu, que a acredito hoje como exacta, sentia, como sinto, que alguma coisa ficava por explicar e que era eu próprio, essa entidade viva que me habita [...].
"Aparição", Vergílio Ferreira
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