"O que é isto? Que diabo se passa?..."
"O Ercílio, doutor! O nosso Ercílio convocado para a selecção de juniores" (penso que era de juniores). "Vamos ter um internacional!"
"Essa agora!"
Ninguém ousaria pensar que albergávamos ali um colosso do chuto. Mas, digerido o espanto, logo se resolve prestar um efectivo apoio ao vizinho famoso, o primeiro com nome no jornal desde que Sebastião Balbino fora atropelado pela furgoneta do correio.
Decide-se que a rua em peso irá ver o jogo, o jogo salvo seja, o Ercílio.
(...)
É nomeada uma comissão, que passará pelos jornais a solicitar o obséquio de escreverem lá a morada do célebre. E os dias próximos vão-se nos preparativos. (..,)
Fica a cargo de Nazário Clemente, Ivo, o estofador, e do bombeiro João Bonito, o berbicacho da música ambiente: procura-se em vão um bombo, tambor, qualquer coisa que rufe - ficamo-nos pela concertina do velho Geraldo Bemposto, fornecedor de melodias e contos largos.
Esta questão não é todavia pacífica. Nazário Clemente opõe-se, proclama-se abertamente contra: "Mas se o homem só sabe tocar valsas! Acho eu..." Fica em minoria, Ivo e João Bonito garantem que, bem conversado, Geraldo Bemposto é homem para se sair com coisa mais animada.
Vamos então, convém chegar cedinho. (...)
Instalamo-nos no centro da bancada, duzentos compenetrados, claque particular de Ercílio Vicente, vizinho nosso, aqui onde nos vêem.
Ora até que enfim, entram os jogadores, a malta explode num coro sincopado - "Er-cí-lio! Er-cí-lio! Er-cí-lio!" - enquanto Geraldo Bemposto, mavioso, ataca uma valsa. Num desalento, Nazário lança as mãos ao boné, "eu não dizia?!", e Ivo, apanhado em falso, corre a tomar providências: "Ó sô Geraldo, é melhor tocar outra coisa!" Geraldo concede e toca outra valsa.
Vai enfim começar o desafio, a Suíça contra a nossa rua. Mas... "o quê?! O Ercílio não joga?" (...)
A meu lado, Simão Caluda não aguenta, cresce, incha de indignação: "Que bandalheira é esta? É assim que querem salvar o futebol nacional? Vendidos! Malandros!"
Saltitando por três filas de bancada, Noé Pascoal afiança que nada está perdido, tudo se vai resolver fazendo pressão: o seleccionador, o treinador, essa tropa toda, hão-de vergar à vontade expressa da assistência. E o coro irrompe, reconfortado, imperioso: "Er-cí-lio! Er-cí-lio-cí-lio! Er-cí-lio!" (...)
O seleccionador, nhurro, faz ouvidos de mercador e, como sublinha Ramires pai, "não dá uma abébia ao rapaz". A dado momento, porém, como?, que se passa? o "14" levanta-se, Ercílio de pé, olha para nós, olha para o campo, toma embalagem, o seleccionador sonha agarrá-lo, isso é que era bom, o bravo escapa-se, finta-o, atira-se à bola, os suíços param como relógios sem corda, lá vai Ercílio na mecha toda, imparável, terror da Suíça, dispara um bicanço com a força da rua inteira: "Golo! É golo!"
A claque enlouquece de felicidade. Pese embora o pirata do árbitro, que sacode os braços apostando que não valeu, a rua aperta-se comemorando, há beijos, "mas apalpar não vale", adverte Higino Narciso quando Xavier Girol felicita excessivamente a sua. Olá! Agora estão todos a mandar vir com o Ercílio, árbitro e fiscais-de-linha, pior ainda o incompetente do seleccionador, nem o quer no banco, grita-lhe com um dedo espetado a provocação suprema: "Vai lá prá tua rua!"
Aí a rua não se contém e resolve ir ela. (...) No tempo de um sopro a nossa rua muda-se para o relvado, (...) acabou o
match, digam o que disserem ganhámos, um a zero, golo de Ercílio, que sai em ombros, "14" nas costas, bola debaixo do braço.
Em sinal de satisfação e homenagem, Geraldo Bemposto segue atrás, tocando uma valsa.
Mário Zambujal, "Histórias do fim da rua"