No Público de hoje:
Pelas 11h00 da manhã do dia 14 de Outubro de 1964, centenas de soldados da GNR - há quem garanta que eram mais de mil -, muitos deles armados com metralhadoras, cercaram a aldeia de Lourosa, no concelho de Santa Maria da Feira. Traziam consigo várias ambulâncias, indicando que se preparavam para um confronto potencialmente violento.
Que ameaça representava a pequena povoação de Lourosa, já então conhecida pelas suas fábricas corticeiras, para que o regime tenha montado uma tão gigantesca operação repressiva? Na verdade, nenhuma. A população desejava simplesmente conservar o seu padre, que a hierarquia da Igreja pretendia transferir. Durante algumas semanas, as mulheres de Lourosa organizaram uma vigília permanente, 24 sobre 24 horas, para garantir que ninguém lhes levava o seu pároco. Faziam turnos, com a conivência dos patrões das fábricas, que as deixavam largar o trabalho, e do próprio presidente da junta de freguesia.
Tudo começara no ano anterior, quando o jovem padre Damião, de 26 anos, viera para Lourosa coadjuvar o velho sacerdote da freguesia, Benjamim. Com a morte deste último, em Junho de 1964, Damião assumiu a paróquia, para contentamento da população, que gostava deste padre que visitava as fábricas e só cobrava honorários por baptizados, casamentos ou missas fúnebres a quem tinha meios para os pagar.
Um dia, por meados de Setembro, chega a Lourosa a notícia de que o administrador apostólico do Porto, Florentino de Andrade Sousa, que substituía o então exilado bispo do Porto, D. António Ferreira Gomes, ordenara a transferência de Damião. A população não se conforma. Começa então um braço-de-ferro com as autoridades eclesiásticas, que irá ter um desfecho sangrento a 14 de Outubro, no mesmo dia em que Martin Luther King, de quem poucos habitantes de Lourosa teriam então ouvido falar, recebia o Nobel da Paz.
Por motivos difíceis de explicar, o país nunca soube desta matança, nem sequer depois do 25 de Abril de 1974. E os testemunhos dos poucos que, em Lourosa, se dispõem agora a recordar os acontecimentos nem sempre concordam nos detalhes. Mas não restam dúvidas de que a GNR matou duas mulheres, nenhuma delas, aliás, envolvida na vigília, e que baleou mais umas 20, que seriam depois transportadas para os hospitais do Porto.
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